Missa do galo, de Machado de Assis, sob a ótica da Simbologia

missadogaloA alma entende-se a si mesma; uma sensação vale mais que um raciocínio.
Machado de Assis (Histórias sem data)
As segundas intenções não vêm à tona, mas pressentem-se nas palavras, que as encobrem e, todavia, as sugerem.
Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas)

 

Publicado pela primeira vez em 1899, em Páginas Recolhidas, esse conto machadiano já foi exaustivamente analisado. As análises, em geral, privilegiam a ironia, a dubiedade, a dissimulação, o narrador, o espaço, o tempo, as características do estilo do autor, o Realismo como escola literária, o aspecto psicológico das personagens, em especial o de Conceição e o de Nogueira, o narrador ensimesmado, que narra buscando as reminiscências na memória. Outras, de forma mais específica, buscam uma interpretação mais simbólica, pois desfiar a teia machadiana demanda uma dose de coragem uma vez ser necessário que o crítico ou o estudioso de sua obra enverede pelos caminhos tortuosos da simbologia que surge como uma sublinguagem que surpreende.

Todas essas análises são importantes e válidas como suporte para o entendimento de um texto que tem provocado seus leitores ainda hoje, num tempo em que as palavras e as ações são muito mais ditas e vivenciadas que sugeridas. Assim é que nos propomos a um estudo com base na simbologia de nomes, números e objetos a fim de ampliar, ainda mais, os questionamentos sobre o texto em estudo. Não se trata, portanto, de um estudo no sentido denotativo dos termos, mas das sugestões que podem oferecer.

É natural que para uma análise ser, realmente, entendida e validada, necessário se faz a leitura do texto. Partindo do pressuposto de que esse tenha sido lido, vamos nos lembrar: Nogueira, um narrador adulto, relembra-se de uma experiência vivenciada no passado quando, hóspede morador na casa do escrivão Meneses e sua esposa Conceição, aguardava pela hora da missa do galo, na noite de Natal. Enquanto espera na sala de uma casa assobradada na Rua do Senado, lê o romance Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas. Meneses fora passar a noite com a amante; Dona Inácia, a mãe de Conceição, dormia. É de se imaginar que Conceição também dormisse àquelas horas adiantadas. No entanto, ela surge na sala vestida com um roupão “mal apanhado na cintura” arrastando as “chinelinhas da alcova”. A partir daí, ocorre entre os dois um diálogo repleto de ambiguidades, silêncios, insinuações, pausas, estremecimentos, sonolência. Ele, um jovem inexperiente de dezessete anos. Ela, uma mulher de trinta que sabe da traição do marido e aparenta se conformar com “a existência da comborça”. “Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”. A conversa prossegue até o momento em que os amigos vêm chamar Nogueira para a missa durante a qual a figura de Conceição se interpõe entre o jovem e o padre. No outro dia, Nogueira tenta falar sobre a missa, mas Conceição parece não se lembrar da noite anterior. Ele vai para Mangaratiba de onde volta três meses depois. Não mais vê Conceição, mas fica sabendo mais tarde que Meneses havia morrido de apoplexia (derrama de sangue no interior de um órgão, Acidente Vascular Cerebral) que a viúva se casara “com o escrevente juramentado do marido”.

Retomado o enredo, partamos para o estudo. Comecemos pelas personagens:

AS PERSONAGENS E A SIMBOLOGIA DOS NOMES

Machado de Assis não descreve suas personagens, a não ser até o ponto de dar-lhes vida e o faz com objetividade. Quando se demora em alguns detalhes, o leitor pode ter a certeza de que existe alguma intenção oculta. Penetra nas suas consciências, mas deixa-as livres e autônomas. Elas são apresentadas devagar, a conta-gotas, como é peculiar do estilo do autor. O retrato psicológico surge mais importante que o retrato físico. Aprofunda-se, através do narrador, no caráter de Conceição. Analisa suas atitudes diante do comportamento adúltero do marido, diante do adolescente ingênuo e, ironicamente, em relação ao segundo casamento logo após a morte do marido.

Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.
(dicionário – 1.comborça: amante de homem casado. 2.maometana: mulçumana)

Resignada? Passiva? Santa? Seria assim mesmo? É preciso observar o trabalho que Machado de Assis faz com a linguagem. Através do jogo dos contrários, lança dúvidas, diz e desdiz, afirma e nega. Ao mesmo tempo em que a personagem “perdoa tudo”, não é capaz de odiar e, talvez, nem de amar. Da mesma forma que “a santa” aparenta uma indiferença em relação ao marido, parece insinuar-se para Nogueira.

imaculada conceição 2No próprio nome das personagens machadianas estão impregnados os caracteres de suas personalidades: Conceição – “uma santa”. As aspas utilizadas como recurso estilístico põem em dúvidas a santidade dessa mulher, trocada, na noite de natal, pela amante do marido. O epíteto (expressão que qualifica) de santa pode levar, de início, à lembrança da santa, ou melhor, da Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Estaria aí a primeira impressão do leitor?! “Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita”, disse Conceição a Nogueira. Era normal, portanto, que se identificasse com a santa: perdoava, esquecia, achava tudo muito natural. Nesse sentido, lembra a concepção da Virgem Maria, a Imaculada Conceição. No entanto, há o outrocleópata lado de Conceição, o de Cleópatra, cujo   retrato manchado está pendurado na parede da sala, onde a conversa acontece. Esse possível outro lado da personagem é trazido à tona pela posição de mulher experiente ou experimentada pelos ensinamentos de vida nos seus trinta anos e, deles, três de casada. Se ligado ao significado de “imaculada”, ela é aquela que não tem máculas, que não tem manchas, se ligado ao quadro manchado de Cleópatra, ela é aquela que se deixa manchar. Essa mancha relaciona-se ao significado de “concepção” a partir do momento em que Conceição concebe o direito de deixar aflorar a sensualidade, de tornar a imaginação fértil. Ela se insinua, cria situações sugestivas, aproxima-se, afasta-se, cochicha, estremece, toca de leve:

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo.

É como se surgisse uma nova Conceição para ela mesma e para Nogueira. Além disso, a leitura de “Os três mosqueteiros”, livro três mosqueteirosanteriormente interrompida pelo ruído de  Conceição ao surgir à porta, faz com que ele, ao descer do “cavalo magro de Dartagnan”, passe para o plano do real misturado com a ficção do livro. E a Conceição, santa e Cleópatra, que aparece diante de seus olhos, leva-o a experimentar novas sensações, a ter outras impressões:

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da chinelinhas da alcovaalcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé.canapé 2

(…)

De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los.

(…)

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais;

(…)

…naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro.

(…)

A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, – não posso dizer quanto, – inteiramente calados…Conceição parecia estar devaneando.

(dicionário: 2. canapé: espécie de sofá com encosto e braços, ger. de madeira,  trabalhada ou não, no qual se podem sentar de uma a três pessoas).

Ao leitor jovem pode parecer exagerado pensar que o comportamento das personagens possa insinuar mais que um simples diálogo. Que mal haveria na constante troca de lugares por Conceição ou na visão de seus braços por Nogueira? Qual a maldade em cochichar ou em fazer silêncio completo? E em passar “a língua pelos beiços”? Ou deixar ver as pontas das sandalinhas da alcova, ou seja, aquelas só usadas no quarto de dormir de um casal? Para os padrões comportamentais de hoje em que há uma grande liberdade e em que tudo (ou quase) é permitido, pode parecer normal, mas para os padrões da segunda metade século XIX nem tanto. Naquele tempo, qualquer pequeno ato poderia significar muito, poderia macular a imagem, especialmente, da mulher.

No entanto, necessário se faz lembrar de que o narrador dessas lembranças é Nogueira, distanciado no tempo. Por isso mesmo, não merece a total confiança do leitor. É ele quem diz: “Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me”. Tudo teria ocorrido como está narrado?

O significado do nome Nogueira leva também a uma interpretação muito mais sugerida nogueiraque mostrada. Nogueira, árvore e fruto da família das juglandáceas, plantas dicotiledôneas, isto é, que possuem sementes com dois codilédones (“substância de reserva energética transferida ao desenvolvimento do embrião durante a germinação”), como a noz. nozA nogueira é a planta que produz a noz que possui a castanha por dentro e casca rija por fora que a encobre.  É, normalmente, servida nas ceias de Natal. Assim como o fruto, Nogueira é por dentro e por fora. Por dentro, é a semente que desabrocha e, por fora, a casca que encobre seu verdadeiro eu em processo de descobrimento. O nome Nogueira remete, então, ao significado de concepção no sentido da geração de um novo ser assim como vimos com o nome Conceição.

Nogueira espera pela missa. Não é uma missa qualquer. É a Missa do galo.  A sua primeira missa do “galo” na “Corte”. É a primeira vez a experimentar tais sensações, pelo menos em relação a Conceição. É a descobertas das primeiras verdades.

galoE a missa do “galo”? O galo é ave que está diretamente relacionada à fertilidade, à concepção. Utilizando-se de uma perífrase, ele é o “rei do terreiro” na cultura popular. Naquela sociedade de final do século XIX, o homem era quem “cantava de galo”, ou seja, era aquele que dominava, ditava as regras. À mulher cabia aceitar, acatar. Será?

Galo é, ainda, um símbolo solar. Seu canto anuncia o despertar de um novo dia. No caso em estudo, o despertar de um novo ser. Seria o despertar do homem que existe no adolescente? Seria o despertar do homem para a vida, para o autoconhecimento, para a experimentação de emoções novas:

A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja.

(…)

Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição.

(…)

O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo.

Algumas vezes, durante a conversa entre Nogueira e Conceição, havia uma elevação no tom das vozes. Nesses momentos, Conceição lembrava-se da mãe que dormia:

Quando eu alterava um pouco a voz, ela reprimia-me:
– Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras.

Embora a presença de Dona Inácia seja uma presença ausente, posto que não se  encontra na sala, ela se torna necessária para conter os ímpetos dos dois protagonistas. Por isso, seu nome é invocado. Entre outros significados, nome Inácia simboliza a “disciplina”. Haveria nome mais indicado para uma personagem que, no fundo, serve para disciplinar sem estar fisicamente presente? “- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.” Inácia, a mãe, funciona como o elemento censor, aquele que censura, reprime, coíbe.

Por seu lado, Meneses só aparece no conto como referência. Não entra em cena, mas gera a situação. Trai a esposa e esse ato, aparentemente, é visto com indiferença por ela. Essa indiferença é fator que nos leva a suspeitar de que Conceição é mais Cleópatra do que santa, apesar das aparências salvas. Não nos parece normal também que uma mulher pacata, caseira, reclusa possa ter determinadas ideias como aquela a respeito das imagens que devem existir num quarto de rapaz ou numa barbearia. Referindo-se aos quadros representativos da figura feminina que o marido mantém na sala, ela diz:

– Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
– De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
– Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas.

É intrigante o fato de que a certa altura, Conceição refira-se ao marido, chamando-o de Chiquinho: “Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros”. Ora, Chico é apelido de macaco, “símbolo do inconsciente com seus aspectos bons e maus.  Na iconografia cristã, representa a imagem do homem degradado pelos vícios da malícia e da luxúria”. Assim sendo, pode simbolizar um” temperamento ardente e impulsivo, assim como um tanto sexual”. Considerando o fato de Meneses (Chiquinho) ser um homem adúltero e, portanto, manter relações com duas mulheres, a simbologia do macaco pode ajustar-se a sua personalidade. Da mesma forma, aquela indiferença de Conceição em relação a esse adultério, leva-nos a suspeitar do seu casamento com o escrevente juramentado do marido, pouco tempo depois de ter ficado viúva. Nos cartórios oficializados, uma das funções do escrevente é, justamente, a de substituir o escrivão, caso haja a ausência deste. É a ironia machadiana que se faz constatar no texto.

  SIMBOLOGIA DE OBJETOS, ESPAÇOS E ANIMAIS

Por se tratar de Machado de Assis, devemos observar outros dados significativos portarelacionados com alguns símbolos que aparecem durante a narrativa como, por exemplo, o fato de Conceição aparecer à porta, arrastando as “chinelinhas da alcova”.  O ruído que provoca faz com que Nogueira feche o livro e desça do “cavalo magro de Dartagnan”. Ora, porta simboliza “a passagem entre dois estados, entre o conhecido e o desconhecido”, o que se ajusta a Nogueira e as suas descobertas. É a passagem da adolescência para a fase adulta ainda mais reforçada pelo símbolo fálico das chinelinhas usadas por Conceição. livroAo entrar na sala, ela encontra o jovem lendo. Livro aberto, portanto. Sua presença faz com que ele o feche. O livro aberto simboliza a “a matéria fecundada”.  Fechado, é a matéria viva.  É o aparecimento de um novo ser que tanto pode ser Nogueira quanto Conceição.

O cavalo é símbolo da “impetuosidade do desejo” Desejo consciente ou inconsciente cavalodos dois protagonistas numa cena que se desenrola numa sala, ‘imagem extremamente psicanalítica daquilo que está guardado, escondido, preso no inconsciente.  É muito provável que Conceição escondesse alguma mágoa relacionada com o comportamento do marido. Além disso, os desejos ocultos, refreados pela consciência que vigia, mas que estão presentes nos interditos. Desejos que ganham ainda mais força pelo silêncio da noite que, simbolicamente, significa “fertilidade e virtualidade”. Vale dizer que, nessa conversa, tudo é potencialidade, sensualidade, despertar. Na medida em que nada parece acontecer, tudo pode acontecer, se não no plano físico, material, no plano metafísico, sensorial.

A sala, espaço em que ocorre o estranho diálogo, é a de uma casa que possui três chaves, chavesímbolo da “iniciação e do saber”. Iniciação de Nogueira, espelhosaber de Conceição. Por outro lado, há a imagem desta refletida no espelho, convenientemente, mencionada após um estremecimento dela. O espelho, simbolicamente, é a “porta através da qual a alma pode dissociar-se e passar para o outro lado”. Conceição desloca-se para outra dimensão e carrega consigo Nogueira que a vê de uma nova forma:

Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite.

(…)

Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima.

Tudo o que não é dito, nesse conto, diz mais do o que está impresso em suas páginas. Vale mais a sugestão de atmosfera criada nas entrelinhas e na leitura simbólica, inclusive dos números.

SIMBOLOGIA DOS NÚMEROS

Machado de Assis, além de ter sido mestre ao nomear suas personagens, como vimos, é mestre também ao lidar com os números. Vejamos os números em Missa do Galo: o diálogo ocorre numa noite de Natal, pouco antes da meia-noite, aparecendo nas entrelinhas o número 24. A missa acontece, ou pelo menos acontecia, às 12 horas. O segundo sendo divisor do primeiro faz sugerir o número 2 que pode ser representativo da dúvida, da ambiguidade.

número 2

O que seria, nesse conto, mais ambíguo e duvidoso do que o diálogo entre Conceição e Nogueira, do que houve e ou do que não houve, do dito e do não dito, das intenções e segundas intenções? Nada é conclusivo. O número 2, marcando a metade da noite, sugere-nos trevas, silêncio noturno, mistério. Sugere, ainda, o estado intermediário entre luz e treva, noite e dia, quando se dá o canto do galo, o levantar do sol, o acordar do dia. Sugere passagem. Passagem de um estágio a outro: adolescente/adulto; mulher santa/mulher Cleópatra.

O 12 pode ser, também, assim representado:

                                    número 12

Chama-nos a atenção a insistência na utilização clara ou sugerida do número três no decorrer da narração. Vejamos:

·         Conceição tem 30 anos – múltiplo de 3;

·         A Missa do Galo ocorre à meia noite, ou seja, às 12 horas. A soma dos numerais 1+2=3, além de que o 12 é múltiplo de 3;

·         A família é composta por três pessoas: o escrivão Meneses (Chiquinho), Conceição, Dona Inácia;

·         São três sonos leves na casa: Conceição, Dona Inácia e Nogueira;

·         A porta tem três chaves;

·         Nogueira lê Os três mosqueteiros;

·         Conceição casara-se aos 27 anos. Portanto, está a três anos casada;

·         Conceição, referindo-se ao sono leve de dona Inácia, repete três vezes: “mais baixo!”, “mais baixo!”, “mais baixo!”;

·         Os amigos, ao chamarem Nogueira, repetem três vezes: “Missa do Galo!”, “Missa do Galo!”, “Missa do Galo!”;

·         Nogueira vai para Mangaratiba e volta três meses depois, em março, o mês três.

O número três significa o mistério da vida, “coincidências” que só têm explicação pela razão (silêncios, tremores, sonolência, toques involuntários, mudanças de posição…). Os “mistérios”, as “coincidências” estão presentes em todo o diálogo, no silêncio, nas horas noturnas, na vida das duas personagens, no ser e no não ser. Na Cabala, o 3 é “o fim e a expressão do amor porque é o nó misterioso que une o ativo com o passivo, o homem com a mulher”. O 3 é, ainda, apresentado como a solução do conflito representado pelo dualismo do número 2. Por outro lado, simboliza o triângulo amoroso que, nesse caso podem ser três. O adultério real, explicito, vivido por Meneses:

TRIÂNGULO 1

O adultério virtual entre Meneses, Conceição e Nogueira. Virtual, aqui, não no sentido em que esse termo é entendido e usado hoje, mas na acepção da possibilidade, da sugestão provocada pelos símbolos já apontados:

TRIÂNGULO 2

E o adultério virtual entre Meneses, Conceição e o escrevente juramentado do marido, sugerido pelo casamento logo após a morte de Meneses e pelo fato de ser o escrevente o substituto natural do escrivão. Este é, pois, mais um triângulo que fica no campo das possibilidades ou da imaginação:

                                                                               TRIÂNGULO 3

Conceição tem 30 anos. O trinta representa a autoridade, afirmação social, o saber, a experiência adquirida. Por isso, exerce certo domínio sobre Nogueira, que tem 17 anos, número representado pela soma das letras do nome dos dois protagonistas. Vejamos:

SOMA DOS NOMES

Como se não bastasse, o narrador diz terem os fatos ocorridos pelos anos de 1861 ou 1862. Se somarmos os algarismos do segundo número, chegaremos novamente à idade de Nogueira:                    SOMA DOS ANOS

A diferença entre a idade de Conceição com a de Nogueira é de 13 anos:

                                                  DIFERENÇA ENTRE IDADES

No jogo do bicho, o 13 é o GALO. A missa é a Missa do Galo. Essa ave simboliza morte e nascimento, mudança e retomada após o final. Nascimento de um novo ser que pode ser Conceição ou Nogueira, um para o outro ou para si mesmos, uma autodescoberta depois daquela conversa na noite de Natal.

CONCLUSÃO

Machado de Assis, em Missa do Galo, deixou evidente o modo peculiar de seu fazer literário. A maneira de lidar com os fatos, de apresentar as personagens, de analisá-las sutilmente, de forma indireta e fragmentada, deixa sempre no leitor uma dúvida, uma indagação de modo a levá-lo a executar peripécias para desvendar os mistérios, os não-ditos, a ambiguidade, o ar de enigma que persiste, principalmente, depois de encerrada a leitura.

O processo de nominação das personagens leva em consideração o fato de que o nome pode esconder as características essenciais, intrínsecas, psicológicas de cada uma delas, como visto em Conceição, Nogueira, Inácia e Chiquinho(Meneses).

A utilização de números determinados (e não determinados números) encobre intenções, saberes, mistérios. Através da simbologia, tornou-se possível a leitura do que está apenas sugerido nas entrelinhas, no interdito.

O triângulo amoroso, sugerido pela insistência na citação e sugestão do número três, leva a um tema recorrente em toda a obra machadiana, ou seja, o adultério, que se constituiu na marca de uma burguesia ascendente na escala social da segunda metade do Século XIX. No entanto, Machado não faz uma apologia ao adultério. Ao contrário, utiliza-se do tema para criticar uma sociedade em que as aparências se tornaram mais importantes que a essência. Afinal, a própria Conceição aceitava o comportamento do marido adúltero desde que as aparências fossem salvas.

O leitor, diante do estudo da simbologia reinante na obra machadiana, pode questionar: teria Machado pensado em tudo isso? Teria ele conhecimentos a respeito de nomes, números, objetos? E sobre o jogo do bicho, o que saberia ele? É preciso ter em mente que em Machado nada é coincidência. Tudo é conveniência. Tudo tem uma intenção secreta. Arma suas tramas de modo que o leitor caia numa armadilha e resolva por si só os enigmas.

Como disse Bentinho em Dom Casmurro: Pobre leitor!

 

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado. Contos Consagrados. “Missa do Galo”. Rio de Janeiro Ediouro – s/d.

ANTUNES, Orlando. Notas de aula. UFG, 1987.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. RJ: Global, 2012.

CHEVALIER, J. & CHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva, et al. Rio de Janeiro: José OLYMPIO, 2017.

CIRLOT, Jean-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Global, 1997.

FERNANDES José. Análise de Missa do Galo. Notas de aula. UFG, 1987.

https://dicasdeciencias.com/2010/04/19/monocotiledoneas-e-dicotiledoneas/

http://www.significadodossimbolos.com.br

https://cleversonzocchesato.wordpress.com

Um comentário em “Missa do galo, de Machado de Assis, sob a ótica da Simbologia

Deixe um comentário